terça-feira, 2 de novembro de 2010

Eu liofilizo, tu liofilizas

Enio Moraes Júnior
Imagem: www.nescafe.com

As palavras e os encontros têm magia. Liofilização. Adorei essa palavra, foi paixão a primeira vista. Ouvi pela primeira vez da boca de uma amiga que disse que provavelmente eu já conhecia o seu significado das aulas de química. Acontece que sempre fui muito mau aluno nas disciplinas das Ciências Naturais, a que eu costumava me referir como se fosse uma tríade que agia contra mim durante a vida escolar: física-quimica-e-mateMÁtica. Assim, não estranhei que, se é que eu a conhecia, não lembrasse seu significado.

Precisei de um encontro com alguns amigos químicos para decantar melhor essa palavra. Liofilização! Achei a palavra tão bonita que desceu mais suave no meu paladar do que um bom vinho português que eu estava bebendo naquela tarde de domingo. “Liofilizar é transformar algo líquido em pó”, disse um deles. “Nescafé”, disse outro. “No laboratório fazemos isso”, disseram também. “Se você quiser, poderá ir lá conhecer como funciona”, propôs outro.

Mas mais do que conhecer, de fato, qual o significado daquela química, a mim me interessava mais tergiversar sobre a questão, filosofar sobre a possibilidade de algo concreto, sólido, poder virar pó, esvaecer.

Incrível maravilha da química! O vinho descia mais suave ainda. Adorava tudo, cada explicação, cada imaginação. Comemorei a possibilidade de ver o processo, mas adorei sobretudo a palavra. Enquanto aquele grupo de amigos falava das possibilidades liofilizicistas, fiquei em silêncio, conjugando o verbo: Eu liofilizo. Tu liofilizas. Ele liofiliza. Mas seria possível liofilizar gente, pessoas? É possível liofilizar os amores, as paixões?

Nós liofilizamos, vós liofilizais, eles liofilizam. Comecei a viajar numa liofilosofia. Pensei o quanto essa palavra é rica, o quanto a simples ideia, tão simples, de uma reação química pode ser rica, despertar pensamentos e possibilidades.

Se eu pudesse liofilizar alguém, quem eu liofilizaria? De quem eu decantaria toda a água e transformaria em pó? Com que objetivo? Consumir depois, quando eu quisesse? Consumir como? Comer, beber, amar? Mas teria que antes diluir na água… Nossa, quanto poder, quanta responsabilidade! Quanta coisa uma palavra pode trazer a tona…

Liofilizar pensamentos, emporificar o pensamento para pensá-lo depois. Seria possível? Isso desafiaria até a própria Filosofia. Mais um gole de vinho. Enquanto a bebida descia, subia à mente a lembrança da água, usada por filósofos gregos como alegoria para pensar o tempo. Heráclito era o filósofo triste porque olhava para a água do rio e entristecia-se porque aquela água que passava ali jamais voltaria a passar novamente.

Demócrito era o filósofo alegre, que ria. Mas ria de tristeza e o riso tinha a mesma razão do choro de Heráclito: a certeza de que a água não voltaria. E se eles liofilizassem a água? E se eles liofilizassem o tempo? E se o tempo pudesse ser parado, suspenso, liofilizado? Se o tempo pudesse ser estocado em vidrinhos de Nescafé, seríamos mais felizes?

Continuei pensando em quem eu liofilizaria, como e porque. Pensei também se alguém me liofilizaria, com e porque. Uma nova rodada de vinho, despertada pelo trincado do gargalo da garrafa na minha taça, fez-me acordar da viagem solitária.

Esse vinho poderia ser liofilizado?, perguntei aos meus amigos químicos. Eles me olharam como se estivesse entendendo o convite para a minha viagem. Mal tiveram tempo de pensar numa resposta para a pergunta provavelmente absurda, continuei: e as pessoas, e os amores, e o tempo? Tomamos mais vinho para maturar aquelas questões. Resolvemos nos fotografar. Transformávamos aqueles instantes para contemplarmo-lo depois. Sem perceber, executávamos uma liofilização daquele vinho e daqueles momentos. Liofilização. As palavras e os encontros têm magia!